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Antes de ir embora

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Para acompanhar a leitura  ♬  "Me beija com raiva" - Jão A porta bateu às suas costas, o elevador veio mais rápido que de costume. Chave na ignição, acelerador apertado, estava na rua, o rádio tocava aquele som e ele sentiu o vento bater no rosto e respirou o ar da liberdade … A briga começou poucas horas antes. Na verdade, não foi uma briga, era apenas mais uma tentativa de resolver o impossível. Não se sentia feliz havia muito tempo, perdera a conta do tempo em que o sorriso do rosto era não mais que um esforço mecânico pra movimentar os músculos da face. Dentro de si, cultivava um pequeno desejo de liberdade que o sofrimento e a frustração cuidaram de regar para crescer até se tornar insustentável, insuportável.  Sentado na mesa da sala de jantar, disse ao companheiro que não estava se sentindo bem, mas que não era algo momentâneo, não era algo físico, não era algo novo, era tudo isso e muito mais, era insuportável, era grande demais. Recebeu de volta a frieza comum ao...

78 dias no fundo do mar

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Cai uma noite fria sobre São Paulo, caímos nós, um pouco a cada dia, lutando pra sobreviver ao caos que se instalou lá fora; lá fora, porque aqui dentro o caos já imperava. A quarentena beira os 80 dias e nós beiramos a loucura, enlouquecemos de solidão, enlouquecemos de crise, enlouquecemos, simplesmente, completamente. Sobreviver é o imperativo categórico ao qual estamos submetidos, a desobediência a essa lei implica morte. São mais de mil todos os dias. Acostumamos a contar nossos mortos na casa do milhar. Quem se acostuma com o absurdo? O coração doi, enlouquecemos. As fotos mostram as valas abertas aos milhares, em coletivo, construídas verticalmente para abrigar os corpos que já foram e não são mais, tão frágil e tão soberba a vida humana.  Que espécie de existência é essa em que tudo não estava bem pra nós mesmos, não estávamos bem conosco; e também não estava tudo bem com os outros. Como se fossem parte de nós mesmos, descuidamos dos outros e os poderosos descartam...

re-cinzas, re-carnaval

Quarta-feira As cinzas a cidade cinza o carnaval agora é saudade O sonho do carnaval não morre, mas adormece para dar sentido à vida que se desfralda na nossa frente, tal a bandeira da porta-estandarte. Cortejamos o carnaval como o mestre-sala corteja a dama e oferece o pavilhão àqueles que são capazes de amá-lo e respeitá-lo, por todos os dias de sua vida... E assim somos levados, na cadência dos dias, a sobreviver mais um dia, mais um mês, mais um ano... enquanto aguardamos, ansiosos, o carnaval que se aproxima, ainda que distante, ainda que tardio. Recolhemos nossos corpos, nossas vozes, nossas bandeiras e, melancólicos, rumamos para mais um ano que se inicia (novamente), suportando-o apenas pela promessa de que em 12 meses seremos, novamente, mais que nós, seremos um e muitos, seremos outros, seremos o outro, seremos todos carnaval. A evolução do calendário que espreme um dia após o outro e não deixa a harmonia desandar existe por uma razão: é nosso desafio con...

Liberdade, liberdade

Será que a gente consegue ser livre de verdade? Essa pergunta o perturbava há dias. Não foi diferente na noite de sexta-feira, às vésperas do natal, quando foi tocado por uma cena de série em que alunos homenageavam uma professora. A identificação é uma coisa foda. As palavras de uma personagem atingiram em cheio o peito do jovem professor que viu, na emoção dela, suas próprias emoções. A pergunta martelava na cabeça enquanto, preso em casa, à rotina, queria se sentir livre. Noite de dezembro, cinza lá fora, na cidade cinza, cinza ali dentro, só o pó. A eterna procura, o inexplicável desejo, a iminente ação, a palavra não dita, o sentimento não confesso. A prisão invisível que segura o inexistente. Que porra de sentimento é esse que não acalma nem estoura, que lateja? Esse tempinho sem jeito, nessa cidade toda estranha, que de tão estranha se torna casa, se torna lar, se torna família, ela mesma, dos sem-família, dos voluntariamente sós, daqueles que, estando juntos, estão soli...

aquele novo de sempre mesmo amor

O quanto do amor que buscamos não existe de fato? Existem provas de amor, apenas provas de amor. O poeta cantou e arrematou: "não existe o amor". Amar e acordar, amar e comer, amar e trabalhar, amar e viver, amar e amar. A vida dilui o amor na repetição dos dias e o desafio é reencontrar o amor em qualquer sorriso de canto de boca, em qualquer gesto ao passar o prato cheio, em qualquer compreensão após um dia atribulado.  Amar e amar exige, também, que a gente seja capaz de desconstruir dentro de nós o amor-fantasia, o amor-comédia-romântica, o amor-maior-amor-do-mundo. Amar a nossa falta mesma de amor, como disse o Drummond. Lembrar que o filme não vai acontecer na sua vida, porque todo dia é dia de amor e de amar. Lembrar que o beijo da Capitu no Bentinho, que casa perfeitamente com a música da Pitty, não acontece todos os dias. O que rola todos os dias é o beijo-bom-dia, beijo-bom-trabalho, beijo-oi, beijo-boa-noite. Mas aprendemos que aquilo que existe todo...

Somos feitos de outonos

Meia estação, tempo de repetições. Dias comuns, rotinas desbotadas tal qual as folhas que caem das árvores ao bater do vento. No fim do dia, o recolhimento, o cansaço de mais um dia vencido, apesar dos pesares. E o que pesa, no fim do dia, no fim da vida, é nada. Viver tem sido esse grande vazio e lidar com ele é o significado do que é viver. Às vezes, viver é aceitar que são poucos os gênios, mais comum é a mediocridade da rotina. São poucos os magníficos, comum a simplicidade. São poucos os que serão lembrados, muitos serão esquecidos como a estação que se dissolve no decorrer dos dias, enquanto esperamos, iludidos, verões que se projetam com planos, férias, amores, viagens e felicidades que, também elas, passarão como passam as primaveras, os verões e os invernos. Essas linhas se repetem e se mostram, na minha frente, tão desafiadoras quanto os dias se desfiam na minha vida. Talvez escrevê-las seja mais uma tentativa de fugir ao esquecimento tácito do tempo, bem como é tam...

Leve e xícara no alvorecer de mais um dia

Mais um dia de pé, café coado no filtro de papel, cheiro de café no ar. A vida, ao fim e ao cabo, não consegue ser percebida como um todo, mas como essa unidade dividida, contraditória em si mesma. O presente é o que nos é dado. Café na xícara, margarina no pão, celular na mão. Mais um dia. O caminho não é mais o mesmo, tampouco somos nós, os mesmos, nessa vida que não parou desde que tudo aconteceu. A expectativa, antes tão presente, hoje se materializa numa alegria perene de que as coisas estejam em paz, ainda que não haja lugar para o que é móvel e vivo; mas não há os balões que faziam flutuar tudo ao redor, inclusive o cais de porto em que se acreditava estar seguro, quando na verdade era apenas o ponto de partida pro infinito. Sendo infinito, portanto, ficamos aqui, observando a vida que passa enquanto nós mesmos vivemos uma vida que não é infinita. Cada dia, cada passo, cada xícara, cada olhar e cada sonho pulsa no peito dos que vivem. Dias bons, dias ruins, se alternam...