78 dias no fundo do mar
Cai uma noite fria sobre São Paulo, caímos nós, um pouco a cada dia, lutando pra sobreviver ao caos que se instalou lá fora; lá fora, porque aqui dentro o caos já imperava. A quarentena beira os 80 dias e nós beiramos a loucura, enlouquecemos de solidão, enlouquecemos de crise, enlouquecemos, simplesmente, completamente.
Sobreviver é o imperativo categórico ao qual estamos submetidos, a desobediência a essa lei implica morte. São mais de mil todos os dias. Acostumamos a contar nossos mortos na casa do milhar. Quem se acostuma com o absurdo? O coração doi, enlouquecemos. As fotos mostram as valas abertas aos milhares, em coletivo, construídas verticalmente para abrigar os corpos que já foram e não são mais, tão frágil e tão soberba a vida humana.
Que espécie de existência é essa em que tudo não estava bem pra nós mesmos, não estávamos bem conosco; e também não estava tudo bem com os outros. Como se fossem parte de nós mesmos, descuidamos dos outros e os poderosos descartam a vida humana como o lixo que se produz às toneladas na era do capital.
Somos uma montanha de corpos para os quais se procura um fim, tal qual se procura um destino correto para o lixo, para o plástico que embala a obra prima com obsolescência programada que o mundo produz. Não me assustaria se acaso nossos corpos fossem parar nos mares, onde estão os vestígios desse mesmo plástico… E, no entanto, será que a morte já não é a realidade absoluta quando eu digo que não me assustaria?
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Daqui, do fundo do mar, o mundo ganha outros contornos. Como a humanidade é pequena e se atribui ares de grandeza, temos tanta capacidade, mas morremos pela boca, como os peixes que ora contornam meu corpo e ameaçam começar a corroer a minha carne, impregnada de lodo, alga e do plástico que veio parar aqui antes de mim.
Como muitos, antes de mim, também me perguntei o que estava fazendo lá em cima, na superfície, enquanto o mundo acabava. Como vim parar aqui, onde me sufoco na escuridão de um mundo desconhecido enquanto os contornos difusos de uma luz no alto não trazem nenhuma esperança? Que sobrevivência mesquinha, que morte medíocre… Morrem os que estão na superfície, sufocados, pela falta de ar, pela falta de amor.
O grande mestre questiona, no fim de uma das suas maiores obras: por que foi que cegamos? E seus personagens filosofam que já estávamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem. Aqui deste fundo de mar imundo eu me pergunto porque morri. Mas me engano quanto ao momento da minha morte. Não foi agora, não foi o pulmão que colapsou. Morri quando deixei de acreditar no amor, quando me fechei na minha escuridão e não olhei pro outro. Fechei os olhos e, quando abri, estava aqui nesse fundo de mar, no escuro, podendo enxergar muito mais que na claridade do dia.
Cai a noite sobre São Paulo e, nesse mar de solidão, a noite é só mais uma morte que somamos ao número oficial de mortes contabilizadas, nesse dia quatro de junho, em decorrência da Covid-19. Em 78 dias, nos últimos 78, morreram 210 milhões de brasileiros, um pouco a cada dia. Do fundo do mar faço minhas contas e a morte passa por aqui, uma vez por dia. Fora ela, que me abraça, meu fundo de mar é solidão e secura.
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