Leve e xícara no alvorecer de mais um dia


Mais um dia de pé, café coado no filtro de papel, cheiro de café no ar. A vida, ao fim e ao cabo, não consegue ser percebida como um todo, mas como essa unidade dividida, contraditória em si mesma. O presente é o que nos é dado. Café na xícara, margarina no pão, celular na mão. Mais um dia.

O caminho não é mais o mesmo, tampouco somos nós, os mesmos, nessa vida que não parou desde que tudo aconteceu. A expectativa, antes tão presente, hoje se materializa numa alegria perene de que as coisas estejam em paz, ainda que não haja lugar para o que é móvel e vivo; mas não há os balões que faziam flutuar tudo ao redor, inclusive o cais de porto em que se acreditava estar seguro, quando na verdade era apenas o ponto de partida pro infinito.

Sendo infinito, portanto, ficamos aqui, observando a vida que passa enquanto nós mesmos vivemos uma vida que não é infinita. Cada dia, cada passo, cada xícara, cada olhar e cada sonho pulsa no peito dos que vivem. Dias bons, dias ruins, se alternam nas vidas de cada um com quem cruzamos, com quem falamos, com quem trocamos olhares e com aqueles que fingimos não ver, cegos eles e cegos nós, do que vai adiante e do que ficou para trás.

Mas se a vida não se percebe no todo, muito menos conseguimos passar despercebidos pela junção de suas partes. Nada me tira da cabeça a ideia de que aquele dia fatídico em que levantei, tomei minha xícara de café, beijei sua testa e fui trabalhar... bem, aquele dia estava para acontecer. Não há outra vida possível senão a que hoje nos pegamos vivendo. Desde aquele dia, eu nunca mais te abracei; te vi de relance e fingi não ver. Enquanto, numa metáfora perfeita da vida, eu entrava em um lado do metrô e você no outro mesmo transporte que nos levou adiante e que nos leva adiante nessa separação inseparável de cada um de nós.

A vida parecia suspensa quando o insustentável aconteceu. Mas o insustentável era leve. Leve como o peso da responsabilidade emocional sobre nós mesmos e sobre o outro. Quando Drummond nos disse “aceito a noite”, ele quis nos dizer isso mesmo. A morte, “com seus sortilégios”, amiga de Manuel Bandeira, foi acolhida como amiga, mas veio apenas dizer que não era hora de ir com ela, era hora de permanecer aqui, nesse intervalo entre a chegada e a partida da vida. Era hora de permanecer. Aceitar a noite e fazer dela o contraditório da vida: o primeiro dia do resto de nossas vidas.

Fica a lembrança, que voa pesada como a nuvem, cheia de amor, como o coração; fica estampada na xícara de café que ao meu lado me faz companhia enquanto, tanto tempo depois, ainda escrevo essas mal traçadas linhas para pôr para fora o que pesa no coração. Esse peso que me faz voar e que me faz sentir que a vida ainda pulsa, apesar de tudo. A cabeça leve, o peito aberto, a xícara vazia, com “cada coisa em seu lugar”.

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