Antes de ir embora
Para acompanhar a leitura ♬ "Me beija com raiva" - Jão |
A porta bateu às suas costas, o elevador veio mais rápido que de costume. Chave na ignição, acelerador apertado, estava na rua, o rádio tocava aquele som e ele sentiu o vento bater no rosto e respirou o ar da liberdade
…
A briga começou poucas horas antes. Na verdade, não foi uma briga, era apenas mais uma tentativa de resolver o impossível. Não se sentia feliz havia muito tempo, perdera a conta do tempo em que o sorriso do rosto era não mais que um esforço mecânico pra movimentar os músculos da face. Dentro de si, cultivava um pequeno desejo de liberdade que o sofrimento e a frustração cuidaram de regar para crescer até se tornar insustentável, insuportável.
Sentado na mesa da sala de jantar, disse ao companheiro que não estava se sentindo bem, mas que não era algo momentâneo, não era algo físico, não era algo novo, era tudo isso e muito mais, era insuportável, era grande demais. Recebeu de volta a frieza comum ao outro, mas que tanto lhe machucava - para ele estava tudo bem, obrigado! não precisava ficar assim, ia passar. Mas e se não passasse? A cabeça martelou a mesma pergunta por dias a fio, meses, anos…. à beira dos 4 anos de relação, ele se perguntava quando é que não sentiu aquilo. Houve algum momento?
O medo foi tão grande, tão maior que qualquer coisa. E o medo era externo, o medo era uma redoma que se ergueu sobre ele e que o fazia escolher muito bem onde iria e o que iria fazer: a redoma tinha que passar na porta e não podia correr risco de quebrá-la. E quem diria que a maior ameaça dessa fortaleza de vidro não estava fora dela, mas dentro? Dentro dele. A sementinha de liberdade que um dia, ao levantar e ir trabalhar, deixando o outro na cama dormindo, plantou no coração… chorou ao ir pro trabalho, chorou ao voltar pra casa, chorou por dias, meses, anos, até que parou (parou?). E a sementinha virou vida, muda, viva, pulsante.
Os anos passaram e agora ele estava sentado à mesa vendo o trinco que há dias se formava na redoma ir ganhando forma, crescendo, empurrado pela mesma sementinha que agora era árvore e procurava o ar, o sol, a luz no fim do túnel, a liberdade. O outro, mais uma vez, não entendeu o que se passava. O companheiro, aquele que ficou, aquele que lhe quis e quis ficar, mas que nunca esteve ou que, estando, nunca foi o sol que a liberdade buscava para raiar, para rachar o vidro e ganhar a vida, a luz.
A coragem que nunca teve veio da insustentável necessidade de livrar-se do peso da redoma, do peso da liberdade, do peso da prisão. Era o momento de escolher outra semente, ou de cuidar dela, já que aparentemente ela estava ali, também, dormindo, esperando o momento de poder, fora de perigo, brotar e crescer.
As palavras não ditas não sairiam naquele momento. Não havia o que fazer. Ao sair de casa, fechar a porta e pegar o elevador, ouviu o barulho das rachaduras do vidro que o mantinha preso se quebrando, libertando-o.
...
Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil. A música tocava no rádio. O vento batia no rosto. A noite brilhava resplandecendo a luz que dele brotava. O caminho à sua frente era infinito e ele, que sempre temeu o para sempre, decidiu aceitar um deles dos quais nunca poderia fugir: ele mesmo. Cantava junto será que esse é nosso último segundo?
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