λόγος - movere - travessia

Seria possível viver dentro das palavras? Considere que as palavras vivem dentro de si e o contrário poderia ser possível.

Saiu de casa numa noite de sábado e sentou na mesa de bar enquanto, calado, ouvia a música que entoava. À sua volta, velhos amigos. Um deles chamava a atenção mais que os outros. A pele morena. Os olhos vívidos. E o silêncio compartilhado. Os amigos conversavam, mas ele estava dentro de si e ouvia menos do que imaginavam que ouvia. E o outro, aquele um, na outra ponta, parecia viver do mesmo.

A noite pedia mais cerveja, a noite pedia risadas, a noite pedia dança. Caminharam na noite fria em busca de abrigo pro desejo incessante do corpo que implorava por movimento. Mas os desejos iam além disso. No frio escuro da noite de sábado os corpos pediam um encontro, um abraço, um calor, um amor.

Quanto de um amor pode ficar guardado e durar pra sempre, no silêncio das palavras que não ousam mais sair? Quanto pode alguém permanecer dentro das palavras, dentro de si, dentro do sentimento que não ousa sair? E a contradição de viver das palavras e dela tirar o sustento, tirar o prazer e a alegria... ao mesmo tempo em que elas são as donas e controladoras do sentimento que não pode se concretizar...

Se palavra é poder, a rua era testemunha, naquele sábado frio, da anarquia completa pela ausência de palavra que pudesse ser materializada em som e projetada fora de si, do corpo, do amor. Olhos vermelhos no trem denunciavam o cansaço precoce de quem trabalhou a semana inteira e tinha o sono dos que acordam cedo pra ganhar a vida. E a ideia: vão pra casa, só lá serão capazes de viver mais um pouco nesse frio.

O movimento cessa e o abrigo de, já mais de, um ano se reflete neles, na sua paz. Mas outro movimento se inicia, esse onipotente, à revelia de prisões, de palavras e silêncios. Esse movimento não para. Ele às vezes silencia e se esconde, mas não deixa de correr dentro deles. A energia. A compreensão além das palavras. O amor.

Não se é mais o mesmo, tampouco é o mesmo o rio que corre ao longe, independente de si, ali dentro, sem que se importe com o que é dito ou não. Inquietude. Correnteza. Travessia. A literatura, força onipotente, onipresente, deusa dessas vidas, tá ali, em todo canto, tá dentro deles. Heráclito, Guimarães, les français, the england’s. Um crescente que toma conta e bagunça tudo, dentro ou fora deles, ao seu redor. Roda Viva.

Sem começo nem fim, só continuidade, travessia, a palavra cai no papel, vira escrito numa tela, vira verdade fora do peito, da mente.

“Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.”[*]

Os olhos não podem ver, na fria escuridão da noite, o calor que se levanta e traz o caos pra tirar do lugar as certezas, como rio que corre e leva para o mar a infinitude de um pulsar que segura e depois solta, segue, sorri, vive e faz viver. Não são mais os mesmos, o rio também não é, tampouco o amor. Mas não significa que não exista mais, nesse mar imenso.



[*] Carlos Drummond de Andrade, “Visão 1944”.          

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