O mesmo, outra vez
Outrossim. Outrora. Outra vez,
aqui. A rotina quase esmaga o que sobrou de mim, o que sobrou de nós. Mas basta
um instante livre do peso do todo-dia para reviver mentalmente todo-o-dia o que
vivemos. Para bem e para mal. Dançar na festa da faculdade e segurar a vontade
do beijo. Conversar pela internet. Marcar um encontro. Encontrar e abraçar, no
dia frio, sentindo o calor que emanava daquele amor que era semente e cresceu e
floresceu e.... morreu. Morreu?
Não morreu, porque se assim o
fosse não estaria aqui, pulsando, virando palavra, caindo no papel o que
transborda do coração. Sendo piegas. Sendo amor. Sendo vivo: “Hoje este
gessozinho comercial/É tocante e vive, e me fez agora refletir/Que só é
verdadeiramente vivo o que já sofreu”. Manuel Bandeira, sendo Manuel Bandeira,
é bem capaz de definir o que sinto, o que é esse sentimento, que sofre e faz
sofrer, mas que é tocante e vive e me faz refletir. Sempre.
Depois de tanto tempo, ainda
vivo, isso levanta perguntas, que pairam no ar, intermitentes: o que se faz? Dá
pra matar um sentimento, vivo assim? Existe vontade de matar? O que é morrer e
matar num mundo que mata a gente um pouco a cada dia? O que é matar e morrer
num sentimento que matou e mata, ainda, um pouco, a cada dia...?
Lembro do início, das conversas,
dos planos. Lembro da viagem, das viagens, do sentimento forte e pulsante.
Lembro de ser família e de querer ser família, cada vez mais. Lembro da
política, lembro de tudo. De tudo? De tudo. Lembro de querer um caminho
absolutamente diferente do que foi tomado, lembro de sofrer, lembro de chorar.
E lembro de tudo porque tudo isso ainda sou eu (e será sempre), mas ainda sou
eu de forma intensa, ainda é tudo que eu sou, nesses tempos de absurdos bem e
mal. Se, um dia, isso ganhar uma dimensão de lembrança e os elementos se
incorporarem ao que eu venha a ser, sem você, teremos sobrevivido.
Mas hoje... hoje, eu sou tudo
isso, de que me lembro e que vivi. E sendo isso, não sou nada, porque isso é
passado e ausência. Mas é vivo e presente, ainda que ausente. Isso é paradoxo. Isso
sou eu. Hoje. E justo hoje tocou uma música e eu lembrei (mais forte) de você. “Você pega o trem azul, o Sol na cabeça/O Sol pega o trem azul, você na
cabeça”...
Porque andar por aí é lembrar que
um dia você saiu andando e foi embora. Eu fui trabalhar e nunca mais te vi.
Como um trem que partiu (lembrando de Clarice Lispector e seu “A imitação da
rosa”), partiu mas a bagagem ficou. Ficou e
você precisa seguir, mesmo sem roupas, mesmo sem livros, mesmo sem parte
de você, que ficou naquele ponto, naquela noite de brigas, naquela manhã
fatídica em que se diz adeus, querendo-se dizer até logo. Em que o partimos com
o trem azul. Ou que o trem azul parte com nossa luz. E fica você, na cabeça.
Sinto sua falta.
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