As histórias que a História não conta

Sonho ou realidade?
Uma dádiva do céu
Vi, no Morro da Mangueira,
Sambar, de porta-bandeira, a Princesa Isabel

Quando o branco Francisco Alves aparece como compositor de obras primas ao lado do negro Ismael Silva, verdadeiro compositor de muitos sambas que circularam na voz de outros, vemos que a história nem sempre é contada da maneira verdadeira. Não apenas em casos de distorção, o que se tem, muitas vezes, é uma omissão. Quais livros de história abordam de maneira aprofundada os costumes e crenças dos escravizados no Brasil da época colonial? Quantos romances retratam essa camada, a mais importante da sociedade brasileira durante quatro séculos? Dizem que o samba é um símbolo nacional. Quantos brasileiros saberão dizer a origem deste ritmo musical? Quem conhece os grandes sambistas? Para os brasileiros, quem foi Ismael Silva? Tem histórias que a História – essa, oficial, com inicial maiúscula – não conta.
Ismael Silva, contudo, foi transformado em personagem, recentemente, no livro Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. E uma consulta aos componentes de escola de samba não nos deixaria na mão, ao questionarmos um dos fundadores da Deixa Falar, considerada a primeira Escola do Samba do país. No entanto, outros personagens e fatos, não necessariamente ou estritamente ligados ao samba, também ficam de fora da História. As escolas de samba, por sua vez, tem um papel muito importante ao contar as histórias renegadas pelas vias oficiais.
Uma boa maneira de começar a ilustrar isso é recorrer à epígrafe com que abrimos o presente texto. A citação ao samba da Estação Primeira de Mangueira, do ano 2000, nos remete ao enredo do respectivo ano, cujo título era “Dom Obá II - Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo”. No ano de 2000, enquanto as escolas de samba do Rio cantavam as glórias dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil, Mangueira olhou pelo povo negro e, num dos versos de seu samba cantou “500 anos, Brasil, e a raça negra não viu o clarão da igualdade [...]”. Dom Obá II D’África é o título de Cândido Fonseca Galvão, neto do rei do Império de Oyo, em África; ponto fora da curva, Cândido lutou na guerra do Paraguai e, por sua bravura, foi condecorado no exército brasileiro. Amigo de D. Pedro II, foi abolicionista e trabalhou no combate ao racismo.
A breve narrativa sobre a vida de Fonseca Galvão, feita no parágrafo anterior, deixa de lado muito do folclore que envolve a vida do chamado Dom Obá II. Mas situa para os leitores destas linhas a história de uma figura que foi na contramão da História e, sendo negro, tinha acesso ao Paço Real e as graças do Imperador do Brasil. Num país marcado pela segregação racial, quantos brasileiros conhecem a história de Dom Obá? A resposta mais certa é que poucos têm conhecimento sobre a história que a Mangueira, por sua vez, trouxe à luz, na avenida, no carnaval de 2000.
Outro exemplo a ser evocado é o “desfile da década” dos anos 2000. Em 2001, a Beija-Flor de Nilópolis levou para a Sapucaí “A saga de Agotime: Maria Mineira Naê”; a história da rainha Agotimé, que cultuava voduns e, vendida como escrava, chega ao Brasil e funda, no Maranhão, a Casa das Minas.
Os dois exemplos acima mostram duas figuras de importância histórica, cuja história foi apagada pelo tempo e reavivada pelo carnaval. A importância das Escolas de Samba para a cultura brasileira é imensa. Veneradas dentro de fora do país, elas representam, aquilo que de mais bonito, feliz e alegre o país produz, unindo música e artes plásticas numa efêmera e estonteante celebração cultural. Fato é que essas escolas, pela publicidade garantida através da televisão e da mídia em geral, têm o poder de divulgar não só aos brasileiros, mas ao mundo – através das transmissões internacionais – seus enredos e, cumprindo um papel muito especial, levam ao mais distinto público as histórias mais distintas, dos mais diversos assuntos e períodos.
Assim aconteceu, por exemplo, com os “Agudás”, da Unidos da Tijuca (2003), que eram os escravizados que voltaram para a Costa do Benim, em África, e levaram para a região os costumes adquiridos no Brasil, como a feijoada, a festa do Senhor do Bonfim e os próprios festejos do carnaval. O que se vê, se analisarmos mais a fundo, é que grande parte desses enredos que tratam de temas e personagens pouco conhecidos tematizam a Raça Negra e muitas de suas histórias.
Dom Obá II, Maria Mineira Naê, os Agudás, a sambista Clementina de Jesus, exaltada em “Kizomba, festa da raça” da campeã Vila Isabel, de 1988, ou Pelé e Benedita da Silva que, junto a Zumbi dos Palmares, protagonizaram o belo carnaval da Caprichosos de Pilares de 1998; porque não citar, ainda, o inesquecível “100 anos de liberdade: realidade ou ilusão?” da Mangueira, de 1998: “Pergunte ao criador / Quem pintou essa aquarela: / Livre do açoite da senzala, / Preso na miséria da favela”. O belo samba da verde-e-rosa elevava a rei o negro, simples, do Morro da Mangueira, do Rio de Janeiro, do Brasil: “O negro samba, o negro joga capoeira / Ele é o rei na verde-e-rosa da Mangueira”.
Outros aclamados carnavais sobre a temática foram “Festa para um rei negro”, do Salgueiro (1971) e o recente “Áfricas: do berço real à Corte Brasiliana”, da Beija-Flor de Nilópolis (2007). Os desfiles de carnaval, portanto, deram a conhecer, ao mundo, as aventuras, as ações, as alegrias e sofrimentos de figuras e povos que não são estudados e sobre os quais pouco se fala. Para os diferentes povos – historicamente silenciados, pelos horrores da escravidão, pela abolição sem inclusão social ou pela “miséria da favela” – as agremiações do carnaval concedem voz e vez. O grito silenciado ressurge em versos como “Agoye, o mundo deve o perdão / a quem sangrou pela história / África de lutas e de glórias” (Beija-Flor, 2007).
Por fim, gostaria de evocar o carnaval que está nascendo e que traz um exemplo digno e claro daquilo que vimos expondo até aqui. Para o carnaval de 2015, a Estação Primeira de Mangueira escolheu o enredo “Agora chegou a vez, vou cantar: mulher de Mangueira, mulher brasileira em primeiro lugar!”. O enredo visa a exaltar as mulheres do Brasil e, novamente, dá voz a um grupo minoritário, que sofreu e continua sofrendo a crueldade do machismo ao redor do mundo. O magnífico é que a escola não se prende em grandes figuras históricas e midiáticas; Mangueira vai à procura do valor e da força da mulher naquelas que compõe a sua história, a história do Morro da Mangueira, evocando-as como parte do “cenário”, que “é uma beleza”, e como força ativa de transformação e luta por igualdade. Como a própria sinopse propõe:
Então, respeitem quem pode chegar aonde elas chegaram e abram alas para todas as mulheres que se colocaram à frente de seus tempos e que, nunca estiveram à espera de príncipes encantados para lhes salvar! São estas mulheres que nos conquistam pela simplicidade e, ao mesmo tempo, se impõem pela grandiosidade, e que hoje, personificadas em Dona Zica e aclamadas em um desfile triunfal, recebem de Mangueira o que a história oficial muitas vezes lhes negou: a valorização e o reconhecimento. [1]
Trazendo também mulheres famosas e importantes para o país, o enredo da Mangueira dá voz a Neuma, Zica, Lucíola, Lina e todas as “Marias” do país.
Nesse sentido, portanto, o samba de Ismael Silva – o mesmo Ismael cuja voz, muitas vezes, foi silenciada – foi e ainda é responsável pela afirmação das pessoas e das ações que a História oficial silenciou, ocultou, deixou apagar. A importância dessas pessoas, a importância da comunidade negra, das mulheres e do próprio samba, no Brasil, pode ser vista na Sapucaí, a cada ano; seja nos enredos das escolas, seja no fato de elas existirem e saírem dos subúrbios e favelas do Rio de Janeiro para ganharem a avenida e o mundo. Nas palavras dos sambas que marcam as escolas do Rio, vemos que o sonho de liberdade e igualdade não morre, justamente porque são eternizados na voz das comunidades. Cito o samba de Vila Isabel, em 2012, sobre Angola:
Semba de lá, que eu sambo de cá
Já clareou o dia de paz
Vai ressoar o canto livre
Nos meus tambores, o sonho vive.
Nos tambores, nas vozes, nas fantasias e no suor das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, o sonho vive e a História é revivida e recontada.

Umberto Neto
São Paulo, agosto de 2014.



Indicações bibliográficas:

[1] Sinopse Mangueira 2015, disponível em: http://www.mangueira.com.br/mangueira-divulga-sinopse-para-2015/ (acesso em 30/08/2014);
“O grande Ismael Silva”, disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-musicais/geral/o-grande-ismael-silva (acesso em 30/08/2014);
“Cândido da Fonseca Galvão”, disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A2ndido_da_Fonseca_Galv%C3%A3o (acesso em 30/08/2014);
“Nã Agotime: a saga de uma rainha”, disponível em http://ocandomble.wordpress.com/2012/07/22/na-agotime-a-saga-de-uma-rainha/ (acesso em 30/08/2014);
Letras dos sambas e enredos disponíveis em http://www.academiadosamba.com.br/.

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